Liberdade mais cruel

Raquel Lima

Liberdade
Mais Cruel

a minha liberdade sempre foi a mais cruel
a que deriva na alvorada
adormece ao relento
à beira da estrada, a da casa ocupada
a do amor inquieto
rebenta tudo pelo caminho
a esbanjadora
a minha liberdade sempre foi a mais cruel
explode em papel A2 dobrado em 3
diminui-se, martiriza-se
oprime-se, fragiliza-se
liberdade da diva frustrada
que não conta nada
além do arrepio brando do seu tamanco
de salto alto, ingénua canta
uma regra de régua e esquadro
de ecrã e teclado
é a liberdade da puta amedrontada
que sente tudo mas não sente nada
numa paranóia da encruzilhada
de pensamentos bloqueados na
vontade de ser recta e não incerta
ter um caminho considerado
aplaudido pelos vizinhos
compatriotas desconhecidos em terra alheia
ser pessoa, ser poeta
liberdade cruel e ausente
a mais frustrada
liberdade revoltada
que apenas nua existiria
exposta ao gatilho, à bala,à guilhotina
liberdade na balada, na insónia, no castigo
liberdade sem religião, nem cura nem terço, sem abrigo
liberdade de abraçar os demónios mais cruéis
porque o segredo da liberdade é deixá-los passar por aqui.

Ingenuidade Inocência Igorância.
Animal Sentimental e BOCA –
palavras que alimentan, Lda, 2019.

BIO

Raquel Lima (1983) é lisboeta das duas margens do Tejo e do Atlântico, de mãe angolana, pai santomense, avó paterna senegalesa e trisavó materna brasileira.

Poeta, performer e arte-educadora, fixa nesta edição em livro & áudio parte de um percurso de dez anos de poesia essencialmente oral, movimento que a levou a mais de uma dezena de países na Europa, América do Sul e África. Durante esse período, apresentou o seu trabalho em eventos de literatura, narração oral, poetry slam, spokenword, performance e música.

A transdisciplinaridade com que aborda arte, memória e sociedade, atenta às desigualdades sociais e aliada a uma vontade de encontrar e compreender as suas raízes, levou-a a regressar à academia, onde desenvolve a sua investigação focada em oratura e escravatura em São Tomé e Príncipe no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

É doutoranda do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Bolseira FCT. A sua investigação centra-se em oratura, escravatura e movimentos afrodiaspóricos. Colabora com o projecto ALICE – Epistemologias do Sul do CES desde 2016. Licenciada em Estudos Artísticos, com especialização em Artes Performativas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2008). Foi bolseira da 1a edição do Programa INOV-ART, organizado pela Direcção Geral das Artes / Ministério da Cultura, no Rio de Janeiro, Brasil (2009) e bolseira Leonardo Da Vinci em Paris, França (2010). Publicou os seus poemas em diversas línguas e tem realizado performances e workshops em torno da poesia oral a nível nacional e internacional, destacando os workshops de poesia, raça e género: para uma escrita poética interseccional. Actualmente colabora com o projecto de investigação Post-Archive: Politics of Memory, Place and Identity da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Entrevistamos a
Raquel Lima

“A poesia contemporânea portuguesa se encontra num momento muito rico na sua versatilidade, diversidade de estilos, géneros e vozes”

O que representa para ti receberem este prémio aRi[t]mar?

Eu acredito que representa o resultado de uma relação que se foi fortalecendo com a Galiza desde a minha participação em diferentes eventos em 2018, nomeadamente o festival Alguién que Respira no Teatro Principal de Santiago de Compostela, no evento Os Três Tempos da Poesia, Música, Pintura, Baile no Verbum Museum em Vigo, e, finalmente o Festival Feminista 85C também em Vigo. Penso que a minha nomeação parte dessa relação de familiaridade que permitiu que a minha poesia fosse ouvida e lida por um público galego sempre muito interessado e acolhedor.

Por que achas que o público gostou tanto de “Liberdade mais cruel”?

O poema Liberdade mais cruel é muito visceral, e não são muitos os meus poemas que vêm desse lugar flagrante da inquietude, do desequilíbrio, da assumpção das feridas, das fragilidades mais profundas escancaradas literalmente, e acho que o público talvez tenha gostado dessa sinceridade, não sei…

Qual acha que é a situação atual da poesia em Portugal?

Acho que a poesia contemporânea portuguesa se encontra num momento muito rico na sua versatilidade, diversidade de estilos, géneros e vozes. Estou mais atenta à escrita de mulheres e tem sido um enorme prazer acompanhar poetas/escritoras como a Gisela Casimiro, a Matilde Campilho, a Judite Canha Fernandes, entre outras.

Que vais ofrecer na gala aRi[t]mar?

Espero que a gala aRi[t]mar seja uma oportunidade de troca e celebração daqueles e daquelas que se constroem, contemplam e lutam com palavras e que sirva para que sigamos o caminho com mais confiança e seriedade. E nesse sentido, resta-me oferecer poesia, sorrisos e gratidão.

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